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11 DE DEZEMBRO DE 2023
Artigo – Marco legal das garantias (lei 14.711/23) e as incertezas na hipótese de bens imóveis com garantia fiduciária na recuperação judicial
A lei 14.711/23 permite ônus sucessivos em imóveis via alienações fiduciárias, mas prioriza execuções pelo credor fiduciário anterior, transferindo direitos dos credores posteriores ao preço obtido na venda, cancelando suas alienações.
A lei 14.711/23, também conhecida como Marco Legal das Garantias, sancionada em 30 de outubro de 2023, trouxe grandes inovações para o mercado imobiliário, com a permissão para a criação de ônus sucessivos sobre bens imóveis através da constituição de alienações fiduciárias sucessivas (artigo 22, §§ 3º e 4º). A eficácia desta garantia está condicionada ao cancelamento das alienações fiduciárias anteriores1.
Diante disso, no caso de haver alienações fiduciárias sucessivas da propriedade superveniente, as anteriores terão prioridade sobre as posteriores na execução da garantia. Isso significa que, se o imóvel for executado pelo credor fiduciário anterior e vendido a terceiros, os direitos dos credores fiduciários posteriores serão transferidos para o preço obtido, resultando no cancelamento dos registros das respectivas alienações fiduciárias.
Tal mudança é de extrema relevância, pois até a implementação do Marco Legal das Garantias, não havia previsão legal para a coexistência desta modalidade de garantia sobre um mesmo bem imóvel e contrasta com as hipotecas e penhores, que já permitiam a criação de ônus de graus sucessivos em favor dos credores.
A hipoteca é um direito real de garantia que incide sobre coisa alheia, enquanto a alienação fiduciária é um direito próprio do credor, um direito real em coisa própria, com função de garantia.
O artigo 1.476 do Código Civil2 estabelece que o proprietário de um imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre o imóvel, mediante novo título, em favor dele ou de outro credor. As implicações jurídicas caracterizam-se pela possibilidade de haver mais de uma hipoteca sobre um mesmo bem, desde que o valor do imóvel seja superior ao valor da primeira obrigação garantida, e desde que no título conste expressamente essa condição.
O penhor, por outro lado, é uma garantia que envolve a transferência de posse de um bem móvel ou de um título de crédito ao credor, para assegurar o cumprimento de uma dívida. Nos penhores, os respectivos graus, 1º, 2º, 3º, etc., são registrados.
Tais garantias já permitiam a criação de ônus de graus sucessivos em favor dos credores, proporcionando maior flexibilidade e segurança nas transações financeiras.
O penhor é um direito real e uma forma de garantir determinada dívida, de acordo com o Código Civil (art. 1.225, inciso VIII)3. Quando da realização do penhor, a pessoa do devedor oferece um bem móvel, imóvel ou um direito, como garantia do cumprimento daquela dívida.
No penhor, o devedor empenha/entrega um bem com o intuito de demonstrar que ele vai cumprir com o pagamento da dívida e que, se não for cumprido, é garantido ao credor que passe a ter direito de propriedade sobre aquele bem empenhado, ou seja, o bem passa a ser dele e não mais do devedor.
Embora o Código Civil não mencione explicitamente a possibilidade de penhores sucessivos, a prática jurídica e a interpretação da lei permitem essa possibilidade. Isso ocorre porque o penhor é um ato voluntário e pode ser estabelecido entre as partes conforme necessário, desde que não viole nenhuma lei ou regulamento existente.
Portanto, é possível ter penhores sucessivos, onde cada penhor é registrado e, quando o penhor em 1º grau é cancelado, o penhor de 2º grau automaticamente passa para o de 1º grau, e assim sucessivamente, o que proporciona flexibilidade e segurança nas transações financeiras, permitindo que os credores tenham garantias adicionais para suas dívidas. É de se notar, portanto, que as garantias sucessivas não se constituem como novidade em nosso ordenamento jurídico, todavia, tal regra não se aplicava à alienação fiduciária.
Por sua vez, é notória a necessidade de que seja analisada de forma mais minuciosa a extraconcursalidade das garantias fiduciárias na recuperação judicial, uma vez que o Marco Legal das Garantias estabelece expressamente que o artigo 49, § 3º, da lei 11.101/05, de 9 de fevereiro de 20054, também se aplica aos credores fiduciários de propriedade superveniente. Isso significa que os créditos garantidos por negócio fiduciário são excluídos da Recuperação Judicial.
Em outras palavras, os direitos de crédito cedidos fiduciariamente por uma empresa em garantia de uma obrigação existente na data do pedido de recuperação, independentemente de a cessão ter ou não sido registrada no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial.
Nesse sentido, a nova lei reconhece que os créditos garantidos por alienações fiduciárias sucessivas não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, proporcionando uma maior segurança para os credores fiduciários, pois seus créditos têm prioridade de pagamento em caso de falência da empresa.
A despeito desse fato, o Marco Legal das Garantias não menciona como será o tratamento do credor fiduciário de propriedade superveniente em situações em que o produto obtido (ou que possa ser obtido) com a execução da garantia não seja suficiente para quitar a totalidade de todos os créditos garantidos.
Por essa perspectiva, uma questão importante merece ser invocada: Como esses créditos serão considerados – concursais ou extraconcursais – na recuperação judicial? A resposta a essa pergunta pode ter implicações para os credores e para o devedor.
Os créditos concursais são aqueles que estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial e, portanto, são pagos de acordo com o plano de recuperação aprovado pelos credores e pelo juízo. Por outro lado, os créditos extraconcursais são aqueles que não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial e, portanto, têm prioridade de pagamento em caso de falência da empresa.
Se os créditos garantidos por alienações fiduciárias sucessivas forem considerados extraconcursais, isso significa que eles têm prioridade de pagamento em caso de falência da empresa.
No entanto, se o produto da execução da garantia não for suficiente para quitar todos os créditos garantidos, isso pode resultar em uma situação em que alguns credores recebem menos do que o valor total de seus créditos.
Por outro lado, se esses créditos forem considerados concursais, isso significa que eles estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial e, portanto, são pagos de acordo com o plano de recuperação, podendo resultar em uma situação em que todos os credores recebem somente uma parte de seus créditos, dependendo do plano de recuperação.
Portanto, a falta de clareza na lei sobre essa questão pode levar a incertezas e potenciais litígios entre os credores e devedores. Assim considerando, se mostra imprescindível ver como os tribunais interpretarão essa questão à medida que mais casos envolvendo o Marco Legal das Garantias sejam a estes submetidos.
Por exemplo, no caso do penhor e da hipoteca, a jurisprudência majoritária entende que, na recuperação judicial, o credor que detém garantia subordinada àquela constituída anteriormente é considerado titular de crédito com garantia real apenas até o limite do bem onerado, conforme previsto no artigo 41, § 2º, da lei 11.101/055 (TJ/SP, agravo de instrumento 2242614-41.19.8.26.0000).
Agravo de instrumento. Direito Empresarial. Recuperação judicial. Impugnação de crédito. Cerceamento de defesa afastado. Legalidade da constituição de duas ou mais garantias hipotecárias sobre o mesmo imóvel, garantida a prioridade de pagamento para o titular da garantia registrada em primeiro lugar. Preempção. Hipoteca de primeiro e segundo graus. A prelação da penhora não incide no concurso de credores instaurado na recuperação judicial, na qual a classificação dos créditos observa o art. 83 da Lei 11.101/2005. A mera configuração de hipoteca de segundo grau não afasta a natureza do crédito, constituído por meio de garantia real. Inteligência dos artigos 1.422 e 1.476, do Código Civil. Impugnação acertadamente acolhida. Recurso desprovido. (TJ/SP – AI: 22426144120198260000 SP 2242614-41.2019.8.26.0000, Relator: Pereira Calças, Data de Julgamento: 29/5/20, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 29/5/20)
Em tal exemplo, se o valor do bem onerado não for suficiente para cobrir todas as garantias constituídas de forma sucessiva, o crédito não coberto pela garantia será considerado quirografário para fins de classificação na recuperação judicial.
Se a regra de que o crédito garantido por alienação fiduciária sucessiva será também extraconcursal for aplicada ao pé da letra, sem esclarecer que tal tratamento seria aplicável apenas à parcela efetivamente garantida pelo bem onerado, o credor não coberto pela garantia poderia, em última análise, ver o seu crédito excluído da recuperação judicial – mesmo com a indicação acerca da insuficiência do valor da garantia -, não lhe sendo assegurado o direito de participar, como um credor quirografário, na recuperação judicial.
Por fim, espera-se que o Poder Judiciário adote, em relação às alienações fiduciárias sucessivas, uma interpretação semelhante à que vemos na jurisprudência para os penhores e as hipotecas, evitando, dessa forma, que ocorram embates jurídicos sobre o tema no futuro próximo.
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1 Lei 14.711/2023. Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. § 3º A alienação fiduciária da propriedade superveniente, adquirida pelo fiduciante, é suscetível de registro no registro de imóveis desde a data de sua celebração, tornando-se eficaz a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anteriormente constituída. § 4º Havendo alienações fiduciárias sucessivas da propriedade superveniente, as anteriores terão prioridade em relação às posteriores na excussão da garantia, observado que, no caso de excussão do imóvel pelo credor fiduciário anterior com alienação a terceiros, os direitos dos credores fiduciários posteriores sub-rogam-se no preço obtido, cancelando-se os registros das respectivas alienações fiduciárias.
2 CC – Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 1.476. O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor.
3 CC – Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 1.225. São direitos reais: VIII – o penhor;
4 Lei 11.101/2005, de 9 de fevereiro de 2005. Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
5 Lei nº 11.101 de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Art. 41. A assembleia-geral será composta pelas seguintes classes de credores: § 2º Os titulares de créditos com garantia real votam com a classe prevista no inciso II do caput deste artigo até o limite do valor do bem gravado e com a classe prevista no inciso III do caput deste artigo pelo restante do valor de seu crédito.
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BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.
BRASIL. TJ-SP – AI: 22426144120198260000 SP 2242614-41.2019.8.26.0000, Relator: Pereira Calças, Data de Julgamento: 29/05/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 29/05/2020).
BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 fev. 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 28 nov. 2023.
BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Dispõe sobre o aprimoramento das regras de garantia, a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, a execução extrajudicial de garantia imobiliária em concurso de credores, o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis em caso de inadimplemento de contrato de alienação fiduciária, o resgate antecipado de Letra Financeira, a alíquota de imposto de renda sobre rendimentos no caso de fundos de investimento em participações qualificados que envolvam titulares de cotas com residência ou domicílio no exterior e o procedimento de emissão de debêntures. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 out. 2023. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Lei/L14711.htm. Acesso em: 28 nov. 2023.
BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 fev. 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 28 nov. 2023.
Fonte: Migalhas
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