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29 DE NOVEMBRO DE 2023
Como um trisal teve a união estável reconhecida na Justiça e registrou filho com 2 mães e 1 pai

Um homem e duas mulheres, que vivem juntos como um trisal, conseguiram na Justiça do Rio Grande do Sul o reconhecimento de união estável, em decisão considerada rara por especialistas. O caso ocorreu em Novo Hamburgo, no fim de agosto, quando o juiz Gustavo Antonello, da 2.ª Vara de Família Sucessões local, atendeu ao pedido de Denis Ordovás, de 51 anos, Leticia Pires Ordovás, também de 51 anos, e Keterlyn Oliveira, de 32.

Semanas depois, nasceu um filho, fruto da gestação de Keterlyn, e os três foram registrados como pais. Juntos há 10 anos, eles dizem ter recorrido à Justiça justamente pelo desejo de terem o bebê. “Decidimos oficializar a nossa união exatamente depois de descobrir a gravidez da Katy (apelido de Keterlin)”, relata Denis. Ao decidir favoravelmente ao trisal, o magistrado disse que chamaram a atenção a “serenidade” e o “entusiasmo” a que se referirem à chegada da criança.

Em junho de 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proibiu que cartórios reconhecessem a união estável de trisais, mas eles continuaram acionando os tribunais para tentar uma sentença favorável. “O fato é que, mesmo que os tabelionatos sejam proibidos de lavrarem esse tipo de escritura, essas famílias continuarão a existir, e ficarão ainda mais descobertas de direitos”, diz Priscila Agapito, integrante do Instituto Brasileiro de Direito de Família e pós-graduada na área.

Já a presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), Regina Beatriz Tavares, reconhece que relacionamentos poliafetivos seguirão acontecendo, mas discorda da ideia de que os mesmos precisam estar amparados legalmente. “Embora as pessoas possam se relacionar como bem entenderem, isso não implica em direito à proteção pelo Estado como se formassem família.”

Para Regina Beatriz, a Constituição e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal só reconhecem como entidade familiar a relação entre duas pessoas. Em setembro do ano passado o Superior Tribunal de Justiça considerou que não se deve reconhecer esse tipo de união poliafetiva.

Keterlyn tinha 22 anos quando conheceu Denis e Letícia, em 2013 – os três trabalhavam em um banco. Denis e Letícia já eram casados havia sete anos, mas eles se aproximaram e acabaram iniciando um “namoro a três”. “No início, não pensava em relacionamento. Mas, estava curtindo muito estar com eles. Fazíamos tudo juntos: festas, passeios, academia, caminhada, chimarrão no parque, jantar com os amigos”, relembra ela.

Depois de alguns meses, as famílias e os amigos passaram a desconfiar. “Aquilo começou a causar uma certa curiosidade. Uma aflição até – da mãe dela (Keterlyn) principalmente”, relata Denis.

Keterlyn passou a viver com o casal e os dois filhos adolescentes que Letícia teve em outro relacionamento. Eles dizem que dentro de casa não houve desconforto. “Tínhamos boa relação com os meus filhos. Quando começamos a contar, obviamente eles foram os primeiros a saber”, conta Letícia.

Mas, se em casa não houve conflito, entre as famílias a situação foi mais tensa. “Tivemos efetivamente problemas com a mãe da Katy e com a mãe da Lê. E também com o pai da Katy, que apesar de não morar com ela, não conseguiu aceitar essa situação, Mas, seguimos a nossa vida, estamos felizes, continuamos até hoje”, conta Denis.

Letícia atribui a resistência a um choque geracional e rejeita insinuações de que seria uma mulher submissa, que aceitou a amante do marido. “Eles (gerações anteriores) não têm essa noção que ‘tu’ pode amar mais de uma pessoa, que as coisas podem ser diferentes como são.”

Incompreensões à parte, ela avalia que hoje a relação familiar melhorou. “Acho que as famílias aceitam mais do que entendem”, resume.

Antes de entrar no relacionamento com o casal, Katerlyn diz que nunca tinha ouvido falar da ideia de poliamor. “As coisas aconteceram com tanta naturalidade que, quando percebi, já estava super envolvida com o relacionamento.”

Obviamente, a relação a três ainda causa curiosidade, e não são raras perguntas sobre como funciona esse modelo. Para eles, a rotina de um trisal não difere muito do cotidiano de um casal tradicional. Os compromissos são parecidos, as contas para pagar no fim do mês são iguais. A diferença é que isso, defendem, precisa ser compartilhado por mais gente. “O poliamor não é perfeito, ão é imune a crises, assim como um casamento tradicional” afirma Denis.

Maternidade compartilhada

Com uma diferença de idade de 20 anos, havia também diferentes desejos. Letícia já era mãe de um casal de adolescentes quando Keterlyn chegou no relacionamento. Se a maternidade já era algo concreto na vida de uma, na da outra era apenas um projeto.

“Sempre tive o sonho de ser mãe, sou apaixonada por crianças”, conta Keterlyn, que comemora o fato de não ter deixado o desejo de lado. “O Denis e a Lê embarcaram comigo nessa aventura.”

Para Letícia, a nova experiência não deixa de ser emocionante. “Ser a mãe não gestante é bem diferente, mas ao mesmo tempo, como estou de licença-maternidade, crio vínculos com ele (Yan) da mesma forma”, diz ela.

“Nosso objetivo sempre foi fazer a certidão de nascimento no nome dos três. A Letícia não ia ser uma madrasta.”, destaca Denis.

Limites legais

Para o advogado Everson Luis Gross, responsável pela defesa do trisal, o CNJ “vedou erroneamente a reconhecimento de uniões estáveis entre três ou mais pessoas pelos cartórios”. Apesar da decisão favorável, ele vê poucas chances de uma legislação favorável a esse tipo de relacionamento em curto prazo, sobretudo diante da atual composição do Congresso, de perfil mais conservador.

Integrante do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Priscila tem entendimento semelhante. “Apesar do nosso Código Civil estar prestes a ser reformado, acho que o tema é de ordem constitucional e mexer na nossa Carta Magna é ainda mais impensável.”

Priscila entende que cabe espaço para reconhecer esses modelos familiares. “Entendemos ser uma intervenção desnecessária estatal na vida privada, uma vez que, pela Constituição, é assegurado a todos o direito à liberdade, pluralidade das formas de família e não hierarquização entre elas.”

Do outro lado, Regina, da Associação de Direito de Família e das Sucessões, argumenta que o modelo de trisais é inviável, inclusive do ponto de vista econômico, tanto para governos quanto para empresas. “Se relações como trisais pudessem ser reconhecidas como uniões estáveis, seus participantes não teriam como dividir o patrimônio ou exigir pensão alimentícia com base no ordenamento legal”, diz.

“Além disso, se trisais pudessem ser considerados como conviventes em união estável, todos teriam direitos perante órgãos públicos, como o INSS (como nos casos de pensões por viuvez ou orfandade) e a Receita Federal”, exemplifica.

 

Fonte: Estadão

 

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