NOTÍCIAS
12 DE ABRIL DE 2024
Artigo – A vida secreta dos livros de registro – Seção “Tudo é Verdade, e dou fé” – Sérgio Jacomino
Quando ingressei na vida cartorária, há mais de meio século, conheci um velho escrevente que era chamado de Chico Cachoeira. Era um homem singular, observador, dono de insuperável senso de humor, tiradas hilárias, às vezes misteriosas, sempre dava bons conselhos embalados por sua enérgica voz de tenor. Diziam que o apelido “cachoeira” se devia ao fato de ele ter nascido ao lado de uma grande queda d’água. Em sua casa, todos gritavam uns com os outros e até mesmo com estranhos.
Cachoeira me recebeu de braços abertos no primeiro dia de trabalho, e o fez lançando uma advertência gravosa e sonora que calou fundo no meu espírito:
– Alemão (todos recebiam um novo nome na iniciação cartorária), ouça-me muito bem: O diabo mora nos detalhes. Observe: um mundo paralelo ocorre bem diante dos nossos olhos e raramente o enxergamos.
Aquilo me parecia estranho. O fato é que me tornei amigo do Chicão.
Às vezes, almoçávamos juntos; outras, tomávamos o lanche da tarde, e a conversa sempre fluía rica e diversificada. Ele era um homem culto, que expressava uma espiritualidade singular. Um dia ele me disse:
– Preste atenção, Alemão. Os livros de registro são entes vivos. Parecem repousar num sono impassível, mas o tempo dos livros não é o tempo dos homens. Fosse dado ouvir o que eles sussurram na calada da noite, ficaríamos maravilhados – ou aterrorizados. Digo-lhe: é um canto misterioso, melancólico, profundo – como o eco que reverbera nas paredes escarpadas de velhas montanhas. Os mais plangentes são os livros de inscrição hipotecária. Sua melodia triste e dolorosa faz estremecer a alma…
Fiquei pensando naquilo tudo por longas semanas. Não queria mais ficar a sós na sala onde os volumes ficavam empilhados na estante. Temia ouvir a sinfonia inacabada dos livros insones e melancólicos.
Certa feita, emiti uma certidão incompleta. Esquecera-me de relatar um usufruto inscrito no Livro 4. Fiz apressadamente a certidão, de modo desatento, extraí os dados diretamente do extrato da transcrição, sem antes consultar o Livro 3 correspondente, como seria de praxe e de rigor. Foi uma desatenção. Quando percebi que firmara aquela certidão de propriedade, dando fé de que o bem se achava livre e desembaraçado de ônus e alienações, estremeci. Soube que a certidão seria usada dias depois para a lavratura de uma escritura pública de compra e venda do imóvel da Rua Marechal Deodoro, velho casarão que resistia impávido à onda de verticalização da cidade.
A usufrutuária era uma viúva que morava no velho sobrado. O marido, antigo comerciante de carvão, o construíra no começo do século, mas partira havia muitos anos. Seus filhos e netos raramente vinham visitá-la. A velha resistia à passagem do tempo. Todas as manhãs recolhia o orvalho que recobria as delicadas pétalas de rosas e artemísias, alimentava os pássaros e regava o canteiro de erva-de-são-joão, verbena e lavanda.
Naquela noite não pude dormir. Meu coração palpitava. Mal esperava o dia despontar para ir ter com o escrevente de Notas que lavraria a tal escritura definitiva.
Na manhã seguinte, estava eu postado à porta do tabelionato, à espera do Zé Gatão, escrevente conhecido por suas manhas e artimanhas. Porém, mal adentrei a saleta abafada, Zé veio falando com um sorriso sardônico:
– Salve, Alemão! Não se preocupe com a certidão, os filhos da velha desistiram da venda. O negócio gorou…
Devolveu-me a certidão de modo desdenhoso, a negativa sublinhada com tinta rubra para magnificar o meu sentimento de opróbrio. Suspirei aliviado, mas saí dali triste e cabisbaixo.
Mal chegava ao Registro e já me esperava o Cachoeira. Lançou-me um olhar severo e de censura. Foi logo dizendo:
– Alemão, os livros nos dão filhos que geram outros filhos. Por essa razão dizemos que algumas certidões são de “filiação”, embora todas elas tragam o registro de sua origem. Quando, por nosso intermédio, os livros dão à luz filhos imperfeitos, os defeitos se projetam como maldição à sua progenitura.
Fez-se um longo silêncio. Passei o dia meditando sobre o ocorrido e não me saía da cabeça a advertência inaugural de minha longa vida cartorária: “Alemão, o diabo mora nos detalhes”.
Fonte: Migalhas
Outras Notícias
Anoreg RS
26 DE DEZEMBRO DE 2023
Artigo – A reforma do Código Civil: direito das famílias – Por Maria Berenice Dias
A Comissão de Juristas entregou formalmente a proposta de reforma do Código Civil em 18 de dezembro. Coordenada...
Anoreg RS
26 DE DEZEMBRO DE 2023
Mulher terá nome de pais afetivos e biológicos em certidão de nascimento
Autora da ação foi criada por seus tios como se fosse filha, mas também mantinha relacionamento com pais biológicos.
Anoreg RS
26 DE DEZEMBRO DE 2023
Folha de S.Paulo – Brasil registra em 2023 número recorde de mudança de gênero em cartórios
Dados parciais da Arpen-Brasil ainda mostram que 15.145 brasileiros já mudaram seus prenomes desde a sanção de...
Anoreg RS
26 DE DEZEMBRO DE 2023
Resolução n. 541/2023 do CNJ disciplina a instituição das comissões de heteroidentificação e o respectivo procedimento nos concursos públicos realizados no âmbito do Poder Judiciário
Disciplina a instituição das comissões de heteroidentificação e o respectivo procedimento nos concursos...
IRIRGS
22 DE DEZEMBRO DE 2023
Clipping – Exame – Evento destaca as oportunidades no mercado imobiliário de alto padrão do Nordeste
“Estamos num processo muito claro de queda da inflação e das taxas de juro, que devem ficar abaixo dos...