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27 DE MARçO DE 2024
Artigo – A usucapião extrajudicial e a importância da ata lavrada por tabelião como elemento probatório para a tomada de decisão do registrador
Introdução
Neste trabalho procura-se demonstrar que a usucapião extrajudicial já é uma realidade no direito brasileiro, tratando-se de um procedimento relativamente rápido realizado perante o próprio Registro de Imóveis com a participação essencial de três profissionais do direito: Registrador, Tabelião e Advogado, e, ainda, quando houver algum tipo de dissenso, também conta com a atuação de outros agentes jurídicos tais como Juízes e Promotores nas chamadas dúvidas registrais; Desembargadores e Procuradores de Justiça nos recursos de apelação e, eventualmente, Ministros do Superior Tribunal de Justiça, os quais, de forma reiterada, em processos de dúvidas, pronunciam-se pelo não conhecimento do apelo extraordinário, tornando o procedimento tão seguro quanto aquele realizado na via judicial.
Entretanto, a pesquisa vai além do simples fato da demonstração existencial da usucapião extrajudicial no ordenamento jurídico do país, abordando, também, as provas que devem ser produzidas durante o procedimento, essenciais ao acolhimento ou rejeição do pedido, com destaque principal entre essas provas para a ata notarial, a qual, quando bem elaborada contribui de forma indiscutível em favor do pleito do usucapiente.
Da usucapião Extrajudicial
Pois bem, a propriedade pode ser adquirida mediante diversos mecanismos criados por lei, entre os quais, no que interessa especialmente a este trabalho, a usucapião.
Trata-se de forma de aquisição originária que tradicionalmente tem sido declarada por órgãos judiciários mediante processos algumas vezes demorados até que a declaração seja registrada no Ofício Imobiliário, deixando o bem de raiz no limbo enquanto a questão não é definitivamente resolvida, fato que diminui o valor econômico do imóvel pela incerteza gerada com a ausência do registro, que uma vez realizado traz maior segurança jurídica e oponibilidade erga omnis.
Instrumento bastante conhecido pelos profissionais do direito, a usucapião agrega segurança jurídica ao imóvel usucapiendo, permite melhor aproveitamento econômico, facilita o crédito, sem contar que pacifica a convivência social.
Entretanto, apesar de ganhar divulgação a partir da Lei das XII Tábuas, que data do século V antes de Cristo, na maioria das nações, ainda nos dias de hoje a usucapião encontra-se submetida a um processo tormentoso, carecendo ser flexibilizado, a fim de acompanhar o desenvolvimento da sociedade contemporânea, onde o fator tempo, mais que nunca, toma conta da vida das pessoas.
Com efeito, a máquina judicial perante a qual habitualmente se desenvolve o processo de usucapião, por estar afeta às inúmeras contendas e submetida a uma densa ritualística que admite diversos recursos, muitas vezes utilizados pelas partes para procrastinar uma decisão final, não só desencoraja boa parte das pessoas que poderia fazer uso do instituto, mas, também, concorre para que os processos sejam morosos, demandando mais tempo até que finalmente transitem em julgado.
Conhecendo essa realidade, o legislador brasileiro tem procurado outros meios menos penosos, desjudicializando, ou como preferem outros, extrajudicializando certas medidas que, longe de desprestigiar a magistratura, que ficará com mais tempo livre para apreciar questões de alta indagação postas em discussão pelo sistema democrático e de direito, deixa que a própria sociedade resolva os casos nos quais não existam conflitos de interesses, como por exemplo o da usucapião extrajudicial trazida para o ordenamento jurídico brasileiro com o Código de Processo Civil (lei 13.105/2015), o qual introduziu o art. 216-A à Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/73), permitindo, quando não houver litígios e, mediante um procedimento simplificado, que os interessados socorram-se do Registro Imobiliário, para que o próprio Registrador, com o poder que lhe fora delegado pelo Estado, reconheça e declare a usucapião em qualquer de suas modalidades.
Vale lembrar, que no Brasil, com a nova moldura que fora dada aos denominados serviços extrajudiciais pela Constituição Federal de 1988, a maioria das Serventias Extrajudiciais é titularizada por profissionais vocacionados após aprovação em concursos bem concorridos e com o mesmo grau de dificuldade das demais carreiras jurídicas, tornando, em tese, que os serviços sejam prestados de forma mais adequada.
Feita essa breve introdução, resta ver como o instituto da usucapião está disciplinado no ordenamento jurídico brasileiro, para tanto, parte-se da própria norma contida no art. 1.2381 do Código Civil, conforme se poderá verificar na nota de referência de nº 1.
No plano doutrinário, leciona SANCHEZ2 “A usucapião configura-se na aquisição de propriedade, ou seja, domínio da propriedade por sua utilização prolongada e ininterrupta, desde que seja constatada a continuidade dessa utilização e a tranquilidade na posse”.
Também doutrinariamente, importante trazer à baila, algumas considerações feitas por BOCZAR, LONDE, CHAGAS E ASSUNÇÃO3, segundos os quais “A partir do dispositivo legal acima transcrito […] podemos extrair os seguintes elementos: posse, contínua (sem interrupção), mansa e pacífica (sem oposição), com animus domini (possuir como seu), propriedade, título e boa-fé […]”.
Por sua vez, e como já mencionado, o Código de Processo Civil acrescentou à Lei 6.015/73 o art. 216-A4, estabelecendo que “Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório de registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado […]”, já estando a matéria, também, regulamentada pelo Provimento n. 149/2023 do CNJ, que instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça relativo ao Foro Extrajudicial, o qual em seu Título III, Capítulo Único, dispõe de forma didática sobre as normas estabelecidas pelo legislador.
Esse regulamento da usucapião extrajudicial expedido pela Corregedoria Nacional de Justiça carece ser bem estudado por todos os atores que de uma forma ou de outra lidam com a usucapião extrajudicial, a fim de que este procedimento não seja utilizado como meio de burla da forma ordinária de transmissão da propriedade imobiliária, pois na prática tem-se visto que algumas pessoas mesmo podendo dispor dos instrumentos ordinários para essa transmissão utilizam-se do instituto da usucapião quando poderiam valer-se da forma ordinária de transmissão da propriedade imóvel, sem prejuízo da Fazenda Pública, que arrecadaria o imposto de transmissão da propriedade.
Da ata notarial como instrumento indispensável e importante meio de prova
Dito isso, necessário também trazer à discussão a questão da ata notarial como meio de prova e ato indispensável na usucapião extrajudicial, considerando se tratar de elemento chave para o deferimento ou rejeição do pedido.
Porém, antes salutar trazer-se ao leitor o entendimento doutrinário desse importante instrumento para o desfecho da usucapião no âmbito extrajudicial.
Segundo RODRIGUES e FERREIRA5, “Ata notarial é o instrumento público pelo qual o tabelião, ou preposto autorizado, a pedido de pessoa interessada, constata fielmente fatos, coisas, pessoas ou situações para comprovar a sua existência ou o seu estado”.
Esse mesmo autor, embora reconhecendo a natureza pública da ata notarial, faz importantes diferenças entre esta e as demais escrituras lavradas por Tabelião de Notas, segundo o qual, entre outras diferenças “As atas e as escrituras têm objetos distintos: a ata descreve o fato no instrumento; a escritura declara os atos e negócios jurídicos, constituindo-os. Na ata notarial, o tabelião escreve a narrativa dos fatos ou materializa em forma narrativa tudo o que presencia ou presenciou, vendo e ouvindo com seus próprios sentidos. […]”.
Percebe-se, assim, que a ata notarial é um indiscutível meio de prova no procedimento da usucapião extrajudicial e, tendo em vista a sua grande importância, deve ser cautelosamente elaborada preferencialmente pelo próprio Notário, o qual, deve, como regra, comparecer ao local do imóvel, a fim de que nada fique fora do alcance de sua percepção, eis que a lei, no particular, exige grande zelo, tanto que nessa fase do procedimento exigiu não apenas a presença do Notário, mas também de um Advogado ou, se for o caso, de um Defensor Público para orientação daquelas pessoas que não possam pagar as despesas do feito sem prejuízo de seu próprio sustento e familiar.
Entretanto, no dia a dia dos Registros Imobiliários, verifica-se, apesar de serem casos isolados, que alguns aspectos importantes deveriam ser melhor tratados nas atas notariais, tais como as características da posse do requerente e de seus antecessores, depoimento de testemunhas e a justificação motivada das razões pelas quais foi dispensada a forma ordinária da aquisição, fatos que interferem na qualificação do Registrador, podendo, a ausência de justificação, ser motivo para a rejeição do pedido, até porque existem situações nas quais a via extraordinária é utilizada como atalho para o não pagamento dos tributos que seriam pagos quando da utilização da via ordinária.
Demais disso, a ata notarial não pode ser considerada mais um elemento formal do checklist do Registrador, devendo ser entendida como uma prova por excelência, daí a razão de o Notário ter o dever de tomar o máximo de cautela na sua elaboração, devendo, juntamente com o Advogado representante do usucapiente, realizar diligências, observando e tomando nota de tudo que possa ser útil ao deferimento do pedido, preferencialmente eles próprios, pois a usucapião ainda é algo relativamente novo, não sendo um fato muito corriqueiro no trabalho das Serventias.
Cabe ainda observar, no particular aspecto, que a prática tem demonstrado que algumas atas notariais têm sido substituídas por verdadeiras escrituras declaratórias, em que pese ostentarem o nome de “ata notarial”, pois seus conteúdos representam meras declarações do usucapiente, quando, para maior credibilidade, o Notário ou, excepcionalmente, seu preposto, deveriam dar fé a cada fato narrado, dispensando, inclusive, assinaturas dos interessados, somente exigindo essa providência nas cláusulas justificativas de posse ou quando o transmitente de seus direitos sejam herdeiros de um posseiro originário, nesses casos, a fim de receber o compromisso dos declarantes sob as penas da lei ou para evitar que o cessionário não seja surpreendido por outrem que reivindique igual direito sucessório.
Dos outros meios de prova além da ata notarial
Ainda que este trabalho tenha como foco principal a importância da ata notarial no procedimento da usucapião extrajudicial, relevante mencionar que, para o livre convencimento do Registrador, assim como ocorre na esfera das ações judiciais para os Magistrados, se avalie o conjunto probatório.
No caso do procedimento de usucapião extrajudicial, poder-se-ia mencionar declaração do imposto de renda com menção ao tempo da posse no imóvel usucapiendo; alteração de nome no cadastro das Secretarias Municipais da Fazenda, quanto aos impostos imobiliários; das companhias de abastecimento de água e luz; no cadastro de endereço do usucapiente em diversos lugares, tudo com certificação do tempo; provas testemunhais; as diversas certidões negativas; e outras que o caso concreto revele ser importante.
Conclusão
A usucapião é um instrumento jurídico de aquisição originária da propriedade imobiliária e a modalidade extrajudicial foi criada como meio de desjudicialização, a teor do que estabelece o art. 216-A da lei 6.015/73 (lei dos Registros Públicos), inserido por força do Código de Processo Civil (lei 13.105/2015).
Nessa desjudicialização, ao Notário se outorgou a missão de lavrar o instrumento que o legislador quis que fosse um dos mais importantes, e por isso mesmo inserido na norma como documento indispensável, que é a ata notarial. E quis o legislador que fosse mesmo uma ata notarial, acreditando que da essência desse ato resultaria a materialização dos elementos necessários, pois como bem lembrando por Rodrigues e Ferreira, nesse instrumento público “o tabelião escreve a narrativa dos fatos ou materializa em forma narrativa tudo o que presencia ou presenciou, vendo e ouvindo com seus próprios sentidos. A partir disso, lavra um instrumento qualificado com fé pública legal e mesma força probante de uma escritura pública”.
Observa-se que a ata notarial não pode, e não deve apresentar conteúdo de mero ato declaratório, unilateral, posto que a ideia é certificar, sob o olhar atento e competente do Notário, verdadeiros elementos de prova, com análise de documentos, oitiva de testemunhas e diligências in loco, daí não ser o caso de se formalizar apenas uma singela redução a termo daquilo que vier a relatar o usucapiente.
Nesse aspecto, compete ao Registrador de Imóveis, responsável pelo procedimento de usucapião extrajudicial em si, verificar se da ata notarial se extrai todos os elementos necessários que o legislador quis, cotejando-os com outras provas carreadas aos autos, a fim de que a sua decisão seja justa e produza a segurança jurídica desejada por toda a sociedade.
__________
Referências Bibliográficas:
1 Art. 1238 do Código Civil. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e de boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro do Cartório de Registro de Imóveis.
2 SANCHEZ, Júlio Cesar. Usucapião. 2. ed.- Leme-SP, Mizuno, 2023, p. 21.
3 BOCZAR, Ana Clara Amaral Amarantes et al. Usucapião extrajudicial: questões notariais, registrais e tributárias. – 4. Ed. – Leme-SP: Mizuno, 2023, p. 16.
4 Art. 216-A da Lei de Registros Públicos. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: I – ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias, aplicando-se o disposto no art. 384 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)
5 RODRIGUES, Felipe Leonardo/FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. Tabelionato de notas. – São Paulo, Saraiva, 2013, p. 15.
Fonte: Migalhas
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